A política externa do governo Libertário voltou a estar sob escrutínio na reta final do ano. Enquanto o mundo se concentra na fragmentação geopolítica, nos realinhamentos entre potências (com o próprio Donald Trump resumindo a competição com a China com o conceito de “G2”) e no papel das organizações multilaterais, a Argentina decidiu retirar-se de vários cenários-chave.
A lista de ausências não é menor. O presidente Javier Milei finalmente faltou à reunião com o G20 em Joanesburgo, uma raridade na Argentina que remonta apenas a 2015, quando Cristina Kirchner enviou uma delegação à Turquia. Mas nem da COP de Belém, nem da Cimeira CELAC-UE em Santa Marta – onde a União Europeia voltou a incluir a cláusula de apoio à questão das Malvinas – e ainda não confirmou se participará na Cimeira do Mercosul em Foz de Iguazú, em pleno cabo de guerra com o brasileiro Lula da Silva. A sequência não foi estranha ao mundo diplomático, tanto profissional como internacional.
Paralelamente, acelerou a sua aproximação ao eixo Ocidental com o avanço em direção à OCDE e uma retórica que questiona a liderança dos pesos pesados do Sul Global – China, Brasil e agora África do Sul -, uma descida que incluiu votos-chave na ONU; e, desta forma, aprofundou um tipo de intervenção diplomática disruptiva que os especialistas já descrevem como uma “diplomacia presidencial” – segundo o académico e internacionalista Esteban Actis in X – selectiva, em que o Presidente decide onde estar (e, sobretudo, onde não) com base em afinidades políticas e não em benefícios estratégicos.
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Argentina distanciou-se do G20 e não assinou a declaração final por “falta de consenso”
As “diferenças geopolíticas” entre a Argentina libertária e o G20
O caso mais recente, a cimeira do Grupo dos 20, foi particularmente sensível. Com a África do Sul a tentar salvar uma declaração conjunta face a um cenário internacional tenso, e com a ausência do Presidente dos EUA, Donald Trump, a forçar as expectativas, vários países – incluindo o México e a Argentina – chegaram à reunião das vinte maiores economias do mundo sem os seus chefes de estado.
A Casa Rosada alinhou sua posição com Washington, uma das únicas certezas das agendas dos três chanceleres que executam uma política externa libertária. O seu presidente, Donald Trump, já tinha antecipado que não viajaria para a reunião realizada pela primeira vez em África e que enfatizou questões que incomodam o trumpismo, como a crise climática ou o conflito no Médio Oriente.
“Não devemos permitir que nada diminua o valor, a estatura e o impacto da primeira presidência africana do G20”, afirmou o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, consciente do peso das ausências, incluindo a do líder chinês Xi Jinping. O anfitrião, entretanto, já tinha tido um confronto com Trump na Casa Branca, quando o acusou de espalhar notícias falsas ao dizer que estava a ser cometido “genocídio contra os brancos” na África do Sul. Um dos pontos de atrito entre os dois é o processo apresentado pela África do Sul contra Israel no Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra e crimes contra a humanidade (incluindo o genocídio contra os palestinianos de Gaza), o que levou a uma investigação criminal e a mandados de prisão contra Benjamin Netanyahu e o seu antigo Ministro da Defesa, Yoav Gallant.
Presidentes Lula da Silva (Brasil) e Cyril Ramaphosa (África do Sul), na cimeira do G20 em Joanesburgo.
O G20, que concentra cerca de 87% do PIB global e mais de 60% da população mundial, não possui poder executivo próprio, mas desde a crise financeira de 2008 consolidou-se como o principal espaço de coordenação entre as grandes economias. Num cenário internacional cada vez mais interdependente e com desafios que nenhum país consegue resolver sozinho, o seu funcionamento é fundamental. Pelo menos na perspectiva das grandes e médias potências asiáticas que protagonizam o cenário actual.
Depois de rejeitar a declaração conjunta, o enviado de Milei, o ministro das Relações Exteriores, Pablo Quirno, reconheceu o “compromisso com o espírito de cooperação” com o G20. No entanto, ele rejeitou a “falta de consenso” em partes fundamentais, incluindo a abordagem “parcial” da guerra no Médio Oriente, segundo o comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
ONU, Malvinas e um aceno à OCDE
Nesse tabuleiro, o voto argentino contra a prisão do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu na Assembleia Geral da ONU – no marco do processo iniciado no Tribunal Penal Internacional – consolidou o alinhamento com os Estados Unidos e Israel, mas aprofundou as tensões em fóruns onde o país costumava ter posições mais a favor do respeito ao direito internacional. Um ex-embaixador admitiu, em conversa informal com a PERFIL, que, neste esquema, a política externa tornou-se mais reativa e comunicada diretamente pelo Presidente ou pelo próprio chanceler, Pablo Quirno, nas redes sociais, mesmo com cruzamentos internos como o que realizou dias atrás com o ministro do Desenvolvimento Produtivo, Matías Kulfas, rematado por Quirno com um lacônico: “Entraram os balubi”.
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Entretanto, ainda é incerto qual o efeito que a viragem drástica da Argentina terá na mudança do esquema global e na posição face às Malvinas, no âmbito do Comité de Descolonização. Nesta linha, outra frente inesperada irrompeu na cena local e politizou a agenda diplomática de final de ano: a possível nomeação de Fernando Iglesias como embaixador na União Europeia. A sua declaração gera desconforto dentro e fora do partido no poder, não por uma questão formal – não há impedimento legal à sua nomeação – mas pelas suas expressões públicas sobre o arquipélago usurpado. Iglesias descreveu a causa nas redes sociais como “um mito do nacionalismo argentino” ou uma “cortina de fumaça”.
Na diplomacia profissional há preocupação: o embaixador representa o Estado e não a sua opinião pessoal, mas a política de defesa dos direitos argentinos sobre as ilhas é uma política de Estado protegida na Carta Magna. Na Terra do Fogo a reação foi imediata. Em diálogo com a PERFIL, um responsável do governo fueguino afirmou que o assunto será levado ao Conselho de Assuntos Relativos às Malvinas do Itamaraty – adiado indefinidamente como a PERFIL apurou junto de fontes do Palácio de San Martín – e que também promoverão ações no Congresso. Para a comitiva do governador, quem relativiza a soberania sobre as ilhas ou destaca a “autodeterminação dos ilhéus” contrária às resoluções que apoiam a posição argentina “não pode defender os interesses do país perante Bruxelas”.
O Ministro das Relações Exteriores, Comércio Internacional e Culto, Pablo Quirno, no G20.
A figura de Pablo Quirno aparece no centro de quase todas essas discussões. Após a sua chegada ao Itamaraty, no final de outubro, líderes políticos, diplomatas e analistas concordam que o seu perfil é marcadamente económico e que a sua prioridade está nos investimentos, nas exportações e na abertura comercial. Um representante do CARI que se reuniu com ele antes da sua posse detectou “mais interesse pela diplomacia” do que no caso anterior, embora do sul do país alertem que esta abordagem torna difícil “encontrar pontos de encontro” sobre questões sensíveis (e relegadas) como as Malvinas.
A única frente onde a Argentina parece avançar com maior previsibilidade é a da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), a partir do movimento que Milei implementou desde o início do seu governo, depois de, paralelamente, ter dado uma negativa aos BRICS. Com o tridente económico (Caputo-Quirno-Bausili) a cargo das áreas estratégicas (Economia, Relações Exteriores e Banco Central, respetivamente), o Governo entregou recentemente o documento com a posição jurídica do país relativamente a cada um dos regulamentos da organização, que inclui as áreas institucional, económica, social, ambiental, educacional e de inovação, onde será avaliada pelos rigorosos comités da organização.
Neste contexto, a política externa argentina aparece num ponto de ruptura: com uma reduzida presença presidencial em fóruns multilaterais, um Itamaraty reorientado para a economia e o avanço técnico do dossiê da OCDE como exceção dentro de uma estratégia mais volátil. O desafio será demonstrar que esta viragem – menos institucional, mais personalista e fortemente alinhada com o mundo ocidental – pode ser sustentada sem minar o delicado consenso interno ou relegar espaços que historicamente amplificaram a voz do país na cena global.
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